“Zapeamos a TV, mas também a internet, zapeamos pelas vitrines
e pelos relacionamentos. Zapeamos ao comer desatentos.
Zapeamos pelos nossos celulares e pelas nossas amizades (…)”
Danilo Amaral, 10 de Abril de 2003
Um anúncio criado pela Apple Box Produtions, no início deste século, e reproduzido por Henry Jenkins no seu livro mais famoso (2006), apresenta-nos a imagem do jovem telespectador anglo-saxónico: cabelos sobre os olhos, ar desafiador, t-shirt comprida a descer quase até aos joelhos, braços cruzados, telecomando empunhado na mão esquerda, dedo grande apoiado sobre um dos botões-gatilho, em posição de clique. Colocadas ao nível dos seus lábios, duas frases com meia dúzia de palavras, no total: You’ve got 3 seconds. Impress me.
“Um passo em falso e ele faz zapping” (2006: 64-5), observa o autor, notando que é ele, o zapper, quem determina o que vê, quando e como, na televisão. “Ele é itinerante – livre de compromissos (…), indo onde o seu capricho o leva”. A palavra impress tem, aqui, um duplo sentido, esclarece Jenkins. Conforme for lida do ponto de vista do consumidor ou do anunciante, assim significará: 1) o impacto que causa no telespectador e que o faz manter-se no canal; ou 2) a adição de mais um telespectador ao número dos que naquele momento estão a ser registados pelos aparelhos de medição de audiências.
O uso do controlo remoto era reconhecido nos anos de 1990, nos EUA, como um dos três principais factores que actuavam na escolha de um programa. O seu aparecimento remonta a 1957, data em que Zenith desenvolveu o artefacto pela primeira vez, nesse tempo ligado ainda ao aparelho receptor. A sua função consistia em tornar mais simples abrir ou fechar o aparelho de televisão, ajustar o som, mudar de estação.
Quatro anos depois, a invenção, por Robert Adler, de um aparelho sem fios com as mesmas funções surge no momento em que a televisão começa a tornar-se uma componente essencial do quotidiano familiar.
Com a disseminação do cabo, do telecomando e dos gravadores de vídeo, no início da década de 1980, começaram as preocupações da indústria da televisão e das agências de publicidade, que já em 1984 dirigiam “consideráveis recursos” para medirem a dimensão da actividade de zapping. Esta começa a ser vista como uma “força incontrolável e potencialmente devastadora do ponto de vista comercial”.
O uso do artefacto atingia sobretudo os ecrãs publicitários, indicaram estudos académicos realizados logo a partir de 1985 e que se prolongaram até aos primeiros anos da década seguinte, na Grã-Bretanha e nos EUA. O mesmo ocorreria em Portugal duas décadas mais tarde, como mostrou um estudo feito pelo autor deste artigo, a partir de dois inquéritos por questionário, a nível nacional, aplicados pelo Obercom em 2006 e 2008.
A resposta da indústria foi imediata. As agências prepararam anúncios mais curtos e mais imaginativos, que distraíssem o telespectador da tentação da fuga. Os programadores, por seu lado, responderam com grandes remédios ao grande mal: colaram programa com programa, cortaram fichas técnicas, esvaziaram a rapidez de resposta do zapper, dando-lhe o que ele quer. Mesmo que seja a retirada de um ecrã publicitário a seguir ao telejornal. É que a medida será compensada pelo share do dia seguinte, que se transformará, com o tempo, em mais publicidade...no meio do filme, da telenovela… Praticara-se, em suma, “zapping interno”, limitando drasticamente o tempo concedido aos convidados, sobretudo aos políticos, como estratégia de antecipação ao zapping do espectador, como bem notou Mário Mesquita (2004: 90-1), vai para dez anos.
Para lá da surpresa, os programadores e anunciantes aperceberam-se, num primeiro momento, com verdadeiro alarme, dos “danos colaterais” da actividade de zapping. Do mesmo modo que o uso do controlo remoto simbolizava a possibilidade de uma inédita selecção, controlo e manipulação das emissões por parte dos telespectadores, o zapping no momento dos anúncios tornou-se “o maior pesadelo da indústria de televisão norte-americana” (Ang, 1989: 2).
No Brasil, cuja indústria televisiva era fortemente influenciada pelos EUA, conta-se que a rede Globo, do lendário Roberto Marinho, atrasou ao máximo, junto da indústria local, o lançamento dos aparelhos de televisão mais modernos. Isto porque se teria apercebido de que o telespectador mais facilmente iria mudar de canal, agora que não precisava de se levantar da cadeira ou do sofá para o fazer.
Arlindo Machado encontra virtualidades criativas na actividade de zapping. Não deixa, porém, de apontar o perigo da sua prática transportar em si a “(...) reiteração infinita e pleonástica do mesmo enunciado” (1996: 146).
Em contraste com a interrogação central nos estudos feitos nos EUA — os efeitos do zapping na publicidade —, em França, a actividade surgiu inserida no movimento mais geral da instabilidade dos comportamentos do consumo e das opiniões: audiências flutuantes, eleitores flutuantes, infidelidade às marcas, aos símbolos, aos maîtres à penser (Chabrol e Perin, 1992).
Nos limitados caracteres de que disponho, saliento, por fim, a atenção pioneira (interrompida por morte prematura) que ao fenómeno dedicou António Louro Carrilho. O seu texto data de 1992, e ocupa apenas três páginas da revista Vértice. Como sublinha Mesquita, ele ultrapassa a visão utilitarista dos programadores e publicitários, problematizando a prática do zapper como configuradora de novas atitudes enquanto telespectador: “o zapping é mais desconstrutivo de um programa comum do que construtivo de um espectáculo individualizado”.
Carrilho detecta cinco atitudes principais do telespectador: de atenção fugaz mas ao mesmo tempo criadora; de liberdade selectiva, que lhe permite escolher o que quer ver e alterar a escolha a qualquer momento; de opulência e de domínio, que lhe oferece o mundo dos canais; de irritação, porque vê tudo sem ver nada, à procura do que não encontra; de individualismo consumista, porque o efeito zapping só é gratificante para aquele que a utiliza.
Embora limitada no seu alcance, pois o espectador não altera o produto mas apenas a forma individual de o consumir, esta nova forma de relação com a televisão produz uma afirmação do eu face ao mundo televisivo pela via do telecomando, sustenta o autor, que no entanto retira desta última asserção consequências negativas para a vivência e fruição colectivas do espaço público.
A escolha do telecomando, enquanto artefacto que oferece em continuum ao telespectador o espectáculo do mundo (de todos os mundos ou mais do mesmo mundo?), marcou a entrada simbólica do telespectador na diversidade das fontes, através do zapping. Esse fenómeno que se impôs e logo entrou na rotina até dos relacionamentos, como tão pitoresca mas inquietadamente observava, nesse início do novo século, o bloguista brasileiro Danilo Amaral, no post com que abri e agora encerro esta breve abordagem:
“ (…) Nem mesmo Bush conseguirá trazer de volta a simplicidade, o nosso curto leque de escolhas entre o certo e o errado. Estamos todos condenados à angústia da informação por atacado.”