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O conceito de “soberania” pode parecer algo anacrónico no contexto actual. Num mundo cada vez mais interdependente, o conceito vestefaliano de soberania nacional – baseado na independência e capacidade do Estado nacional de ser o decisor único e final nas questões que se aplicam ao seu território – é cada vez mais entendido como estando sob pressão, senão mesmo ultrapassado.



Com efeito, não é difícil elencar uma série de transformações que têm fundamentalmente desafiado a concepção tradicional de soberania. Estas podem ser agrupadas em três dimensões interligadas. A primeira prende-se com o processo de integração e cooperação política supranacional, que tem abarcado – em maior ou menor grau, de formas mais ou menos institucionalizadas – praticamente todos os países do mundo (vide não só a União Europeia, mas também a Mercosur, a Organização da Unidade Africana ou até mesmo plataformas intercontinentais como a rede ACP-UE). A segunda dimensão remete para um processo de integração e interligação económica e social que tem frequentemente avançado de forma mais rápida que a sua congénere política, exemplificado pelo facto do comércio internacional constituir neste momento mais de metade do PIB mundial (em comparação com uma proporção inferior a 20 por cento há meio século atrás). Por fim, e relacionado, podemos identificar desafios de políticas públicas que cada vez mais ultrapassam as fronteiras dos Estados, em áreas tão distintas como as questões ambientais, a economia ou a criminalidade.



Os desafios à concepção tradicional de soberania são particularmente relevantes no contexto da cooperação. Primeiro, por razões históricas. A conquista da soberania formal tende a ser mais recente – e, como tal, frequentemente menos institucionalizada – no conjunto dos Países em Desenvolvimento. Segundo, e relacionado, porque as limitações ao modelo vestefaliano de soberania nacional – no sentido de uma incapacidade do Estado nacional de ser o decisor final – tendem a ser mais intensas nos Países em Desenvolvimento. Este padrão abarca dimensões externas, reflectidas na assimetria de poder entre países desenvolvidos e em desenvolvimento nas decisões transnacionais. Mas, de igual modo, comporta dimensões internas, por exemplo em países onde o desenvolvimento do Estado é incipiente e desigual, muitas vezes devido a heranças históricas. Terceiro, porque o próprio conceito de cooperação implica uma potencial tensão com a noção de soberania, na medida em que envolve actores de diferentes Estados (bem como actores não-estatais), com concepções potencialmente distintas de quem tem o poder final de decisão. A conjunção destes factores pode, no limite, subverter a noção de soberania em países em estado de desenvolvimento – um padrão reflectido por exemplo na aplicação de conceitos como “dependência”, “neocolonialismo” ou “estados em situação de fragilidade” (na medida em que esta implica uma incapacidade de efectivamente exercer a soberania) na análise de Países em Desenvolvimento.

Será então a soberania irrelevante no mundo actual? Como de seguida iremos argumentar, a resposta a esta pergunta é não – o conceito de soberania continua a ser de enorme relevância, sobretudo no contexto da cooperação. Contudo, a soberania que é relevante já não é a do “mundo vestefaliano” – com cada Estado a ser o decisor autónomo e independente – mais não seja porque esse “mundo” desapareceu. Antes, torna-se necessário repensar o conceito de soberania para o contexto actual.



Esta redefinição implica articular dois elementos que tendem a ser analisados separadamente: primeiro, o significado do conceito de soberania; e segundo, o contexto do mundo actual. Em relação ao primeiro, podemos dizer que a noção de soberania se centra fundamentalmente na capacidade de um Estado definir o seu próprio destino. Com efeito, é essa a ideia subjacente ao modelo vestefaliano. Neste, a independência e a capacidade de decisão final são os meios (instrumentais) que o Estado tem para poder definir o seu próprio destino. Em relação ao segundo elemento, podemos caracterizar o mundo actual como um mundo de interdependência e interligação. Como salienta o filósofo político David Held, “o nosso mundo é um mundo de comunidades de destinos sobrepostos, onde o destino de um país e de outro estão mais interligados do que qualquer altura antes”.



Neste mundo interdependente, a possibilidade que um Estado tem de definir o seu próprio destino – por outras palavras, a sua soberania – passa pela capacidade que tem de participar na definição de um destino que é não apenas o seu, mas que é também um destino colectivo. Tal como na visão vestefaliana, esta redefinição de soberania continua a pressupor igualdade e apropriação. Contudo, se outrora estes valores eram atingíveis através da independência e autonomia de cada Estado, no mundo “de destinos sobrepostos” requerem uma participação igual em processos que são colectivos e globais.

Desta definição emergem duas implicações centrais. A primeira prende-se com o reconhecimento da interdependência e complementaridade do mundo actual. Tal como no corpo humano, onde órgãos e elementos aparentemente distintos estão intimamente interligados – a tal ponto que a sua sobrevivência depende desta interligação e equilíbrio – torna-se necessário reconhecer a importância das diferentes partes do mundo para o bem-estar colectivo.



A segunda prende-se com a definição de quem é soberano. A análise até agora tem-se centrado na soberania do Estado. Mas, como frisa George Soros, “a verdadeira soberania pertence aos cidadãos” – o Estado (e os governos) apenas a recebem por delegação dos cidadãos. Neste sentido, a noção de soberania não pode ser dissociada da democracia, quer em termos da sua componente protectiva da liberdade dos cidadãos; quer da sua componente de escolha, que permite aos cidadãos participarem na definição dos seus rumos colectivos.



Qual, então, a relevância da soberania no contexto da cooperação para o desenvolvimento? No marco definicional aqui descrito, a soberania constitui um elemento central da cooperação. Em primeiro lugar, enquanto meio para o desenvolvimento. Na medida em que implica o reconhecimento da interdependência do mundo actual, o conceito de soberania obriga a repensar a cooperação como um processo de benefício mútuo – com óbvias consequências atitudinais e comportamentais em relação à cooperação por parte de todos os actores envolvidos. O reconhecimento da soberania implica também a apropriação dos mecanismos, acções e projectos de cooperação por parte dos países parceiros; e, de igual modo, significa que os diferentes actores da cooperação “partilham entre si a responsabilidade pelos esforços conjuntos que desenvolvem em parceria.” Ao mesmo tempo, tende a gerar uma cooperação mais eficiente e eficaz, na medida em que potencia o intercâmbio de informação entre os vários actores. Num mundo onde nenhum actor pode presumir a capacidade de aceder a toda a informação relevante, esta troca de dados (mas também de saberes e perspectivas) tenderá a melhorar os processos de decisão – e a facilitar a decisiva fase da implementação – da cooperação.



Ao mesmo tempo, a soberania deve constituir também um fim em si mesmo do desenvolvimento. Com efeito, a cooperação serve para permitir que os países parceiros adquiram os meios que lhes permitem definirem o seu próprio destino. Neste sentido, a cooperação visa, em última análise, alargar o âmbito e capacidade efectiva de soberania nos Países em Desenvolvimento. Este objectivo pode ser perspectivado quer em termos de áreas, quer de actores. Em relação às primeiras, podemos usar como exemplo a soberania alimentar, um conceito que tem adquirido crescente relevância no discurso e prática da cooperação. Assim, o propósito da cooperação na área alimentar deve ser permitir o alargamento e expansão da efectiva soberania alimentar – definida como o “direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e o seu direito de decidir o seu próprio sistema alimentício e produtivo” – nos países parceiros, sem negligenciar que a soberania alimentar (tal como as demais soberanias) se exerce num mundo interdependente e interligado.

Em termos dos actores, o alargamento da soberania abarca naturalmente o Estado, e é reflectido por exemplo na Cooperação para o Desenvolvimento do contexto e enquadramento legal, dos recursos administrativos e técnicos, ou das forças armadas e de segurança. Contudo, importa não esquecer que este alargamento da soberania engloba também os cidadãos, implicando assim o reforço da cidadania, das instituições democráticas e da sociedade civil, entre outros. Pois são os cidadãos que, em última análise, detêm – e devem beneficiar – da verdadeira soberania.

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