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O DIREITO AO IMPRESCINDÍVEL

Em 2003, quando Charles Taylor ainda era Presidente da Libéria e distribuía guerras e maldade por toda a região, um grupo de mulheres de Monróvia decidiu convocar uma manifestação pela paz. Reuniram-se diante da Executive Mansion, exigindo a paz na cara dos mesmos homens que Taylor usava para violentar a população. A guerra não acabou logo, claro, e as mulheres começaram a reunir-se todas as semanas num velho aeródromo da capital. Não desmobilizaram mesmo quando os combates de artilharia invadiram Monróvia e os morteiros voavam por todo o lado.


Seriam umas setenta mulheres no dia em que visitei o grupo, cantando e rezando na pista vazia, vestidas de branco, como pássaros no sol inclemente,


— Queremos o quê?


— Paz!


setenta mulheres “cansadas da guerra, cansadas de não ter voz”. Nas semanas da batalha por Monróvia, houve alturas em que apenas uma delas conseguiu chegar ao aeródromo - mas, pelo menos, uma estava, marcando presença, em nome das outras. Uma ou setenta, a mesma voz, a voz de todas: a voz de um cansaço de violência, um cansaço que se tornou impaciente, inconformado, incontornável, urgente,


— Queremos o quê?


— Paz!


— Queremos o quê?


— Paz!


finalmente potente, corajoso, o cansaço das violações, das amputações e dos filhos perdidos para a guerra dos homens. Durante meses, as mulheres-pássaro desafiaram o perigo e continuaram a protestar e a rezar “até à paz total”. Foi a segunda fase do protesto “Sim à Paz, Guerra Nunca Mais”. O mote da primeira fase era “Basta de Guerra”.


“Não queremos senhores. Queremos líderes”, gritava Mama Suba, deslocada da província de Lofa, no norte do país. Várias mulheres levantaram-se e falaram da sua experiência, diante das outras, diante de mim. Todas perderam algo. Mama Shari, por exemplo, silhueta altiva sentada ao lado da água e de um guarda-sol, perdeu os dois filhos que tinha, quando um rocket entrou pela sua casa, numa segunda-feira de Agosto. Margareth foi encontrada pela guerra em 1990, na província de Margibi; os rebeldes da NPFL, de Charles Taylor, cortaram-lhe o braço direito. A amputação não a impede de fazer ouvir a sua alegria, uma alegria furiosa. Margareth faz música, saltando, com uma matraca bem apertada na axila.


“Nós, as mulheres, somos pacificadoras naturais. Já ultrapassámos as nossas diferenças, porque todas sofremos os mesmos crimes”, explicava-me Etweda Cooper, líder do movimento pacifista feminino liberiano. O que faz correr mulheres como ela? “Vimos horrores indescritíveis. Não precisamos de outra inspiração”.


Hoje, a Libéria tem uma mulher na Presidência da República, Ellen Johnson Sirleaf. Foi eleita contra vários senhores da guerra. Dito de outro modo: a exigência de um direito deu lugar à necessidade de o concretizar. O contrário seria, literalmente, letra morta.

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