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A SECRETÁRIA VAZIA

A camisola colava-se a cada poro há 22 anos.


Em menina, diziam-lhe que era impensável ir do Porto para Lisboa estudar jornalismo. Por isso, Aurora Lopes, 54 anos, abraçou o secretariado e uma carreira na empresa de Vila Nova de Gaia, uma grande empresa da indústria automóvel.



Chegou a secretária de direcção e estava longe de imaginar os quatro anos de humilhação que se seguiriam ao envio de um e-mail a uma colega de trabalho, que estava de férias.


“Oi fofinha,
Estás bem? Novidades?
Ontem estive ao lado do teu querido, ou seja, mais propriamente à beira do Miguelito. Sentei-me sem saber ao lado de quem e durante a prelecção sobre a filosofia japonesa (que para estes gajos, por acaso, não é japonês, mas sim chinês) (…).”


Brinca, como é hábito, mas um delator intercepta a mensagem enviada por correio electrónico – por lei, privada – e leva-a ao vice-presidente da empresa.


Aurora é suspensa no mesmo dia. Pedem-lhe que se demita, Aurora recusa, mas não se livra de um inquérito disciplinar, com o despedimento no horizonte. O objectivo acaba por ser consumado.


Uma formiga nunca venceu um elefante, dizem-lhe. Mas Aurora não acredita e avança para o tribunal. Ganha na 1ª instância, num dos primeiros processos de violação de correspondência electrónica do país.


A empresa recorre para o Tribunal da Relação e perde – uma vez mais – mas contra-ataca: avança para o Supremo Tribunal de Justiça, que também dá razão a Aurora. É reintegrada, mas a carreira de 30 anos acabou.


Copia os salmos da bíblia para não morrer de tédio. Oito horas por dia, cinco dias por semana.


Pica o ponto e é Deus quem lhe dá trabalho e companhia. À volta há indiferença e humilhação. Toma comprimidos para adormecer e comprimidos para acordar. Dois filhos sofrem com a frustração da mãe e um segundo amor sucumbe ao processo.


Aurora come “o pão que o diabo amassou”, mas decide voltar à justiça e avançar com uma acção por assédio moral.
Em conferência prévia, o juiz aconselha a Salvador Caetano a progredir para uma indemnização. Aurora já venceu muitas batalhas, mas é preciso acabar com a guerra.


Paga as despesas do processo com o dinheiro que recebeu, despe a camisola da empresa, que se agarrava à pele, e investe numa loja de roupas góticas. Tão negras quanto os quatro anos sentada à beira de uma secretária vazia.

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