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A condição humana expressa-se em dois elementos fundamentais: a (consciência da) vulnerabilidade face a determinadas necessidades e a inter-dependência entre indivíduos como determinante na sua satisfação. Contudo, estes dois elementos, interligados, expressam ainda um outro: a sobrevivência, entendida numa perspectiva fisiológica, não se apresenta ainda assim, como fim único ou último da existência humana.


O entendimento desta condição, naqueles três aspectos, traduziu-se na criação de códigos de princípios éticos e morais que orientam a resposta às necessidades humanas, na sua pluralidade, definindo as responsabilidades dos indivíduos e das formas de organização colectiva, mas também as relações sociais de um modo amplo, no que mais tarde se veio a traduzir em sistemas legais de direitos e deveres.


São diversos os códigos orientadores das sociedades humanas. Entre alguns dos mais antigos escritos, encontramos consagrados, nos textos sagrados do Judaísmo, Cristianismo, Hinduísmo, Islamismo, Budismo, princípios fundamentais comuns: o respeito pela vida, o apoio ao próximo, a tolerância, a justiça, incluindo económica, o respeito pelos recursos naturais essenciais à subsistência. Princípios semelhantes podem ser encontrados em textos clássicos de filósofos gregos e romanos, bem como de pensadores africanos, indianos, chineses e persas (Ishay, 2004).


Mas o reconhecimento da dignidade, enquanto inerente à condição humana, nunca foi Universal - muitas vezes, limitado aos homens a partir de certa idade e com determinado património ou ocupação. Às mulheres, aos escravos, às minorias étnicas e religiosas, aos homossexuais, aos estrangeiros, estiveram muitas vezes, reservadas categorias de inferioridade, sub-humanidade, que os impedia de participar na sociedade em condições de igualdade e os tornava vulneráveis ao abuso físico e psicológico. Todavia, se a dignidade da condição humana não lhes era reconhecida, não deixavam de lhes ser constatadas as necessidades básicas de sobrevivência – a alimentação, o vestuário, o abrigo. Neste sentido, caberia à comunidade demonstrar, de acordo com a ética e a moralidade vigentes – formas de compaixão com a situação daqueles que ocupavam lugares considerados inferiores na escala social.


Historicamente, a condição humana, como espaço de igualdade e universalidade no reconhecimento da dignidade, tem sido um terreno contestado quer no que se entende como aspectos inalienáveis da dignidade dos indivíduos quer como titulares dessa condição. Neste sentido, importa referir alguns processos históricos que tiveram influências determinantes no que hoje ainda discutimos.


Para além dos códigos éticos e morais, presentes nas várias civilizações e religiões do mundo e que influenciam o modo de pensar e intervir sobre a condição humana, as transformações políticas, económicas, religiosas e sociais, na história da Humanidade posicionam-nos na actualidade, perante um quadro concreto que se pode caracterizar pela consagração de direitos inalienáveis e universais que, contudo, não deixa de ser alvo de grande debate.


Os períodos do Renascimento e do Iluminismo, na Europa, abriram caminho para processos de rejeição – ainda que de progressão demasiado lenta – da ideia da existência de grupos considerados sub-humanos bem como, de afirmação de direitos e deveres inerentes à condição humana e de relações sociais fundamentadas na liberdade, igualdade e fraternidade - princípios proclamados durante a Revolução Francesa de 1789, na senda da Revolução Americana de 1776. Contudo, noutras civilizações, durante o período da Idade Média na Europa, eram já defendidos princípios de governo baseados no respeito pela vida, a liberdade religiosa, a importância da liberdade de pensamento, da educação e da cultura, bem como da justiça económica. São exemplos a governação do Grande Moghul muçulmano na Índia (1542-1605), a China influenciada pelo pensamento de Confúcio, a região do Mediterrâneo durante o período Islamo-Árabe (750-1250) (Ishay, 2004: 66-69).


Porém, as Revoluções do século XVIII distinguem-se pela criação de códigos legais que abrem a possibilidade de participação dos indivíduos na condução do Estado e na escolha dos seus governantes, o que representa uma mudança nas relações de poder com implicações subsequentes ao nível social e económico designadamente, na capacidade de demanda dos direitos sociais e económicos nos séculos XIX e XX.


Mas a afirmação (progressiva) de uma real universalidade, na consagração e garantia dos direitos às categorias sociais que até aí tinham sido excluídas dos mesmos, fundamentalmente, as mulheres, os povos dos países colonizados, as minorias étnicas, acontece depois da II Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas surge no pós-guerra como base normativa e institucional para o reconhecimento de direitos inerentes à condição humana. Entre ambas as declarações, Francesa e a da ONU, passaram mais de 150 anos.


Já em meados do século XX, com os processos de luta contra a colonização, o debate sobre os direitos surge associado ao debate sobre o desenvolvimento designadamente, o direito dos indivíduos acederem aos recursos fundamentais para uma vida condigna (o que representa uma vida condigna é alvo de discussão). Este debate foi aprofundado nos anos 80, no seio das Nações Unidas, tendo-se procurado consagrar o direito ao desenvolvimento como direito dos povos a beneficiar dos progressos económicos da humanidade, através de uma redistribuição mais justa dos recursos em 1986.


A afirmação deste direito e do plano de acção que lhe estava subjacente, designadamente as mudanças nas condições de comércio internacional e de perdão dívida dos países mais pobres, nunca foi plenamente realizada (Nyamu-Musembi e Cornwall, 2004: 8-9).


A discussão dos direitos aplicada ao desenvolvimento tem evidenciado riscos e potencialidades. Contudo, apesar da ausência de consensos e do recurso ao discurso dos direitos por actores e em contextos muito diversificados, o que comporta também o risco de esvaziar a discussão, esta abordagem implica chamar para o debate do desenvolvimento, da luta contra a pobreza e da cooperação, a sua dimensão normativa, política e ética que não é nova mas que remonta aos fundamentos das lutas de libertação dos Países em Desenvolvimento.


Contudo, a focalização da cooperação internacional na pobreza e na satisfação das necessidades fundamentais, despolitizou o desenvolvimento, tornando-o muitas vezes numa discussão de como “prestar serviços, ao maior número de pessoas, ao preço mais baixo?” (Nyamu-Musembi e Cornwall, 2004: 2).


O debate dos direitos retoma o debate sobre o poder. Retoma o debate. Como garantir direitos e deveres no quadro da cooperação internacional? Quem são os titulares dos direitos e dos deveres? Quem os pode garantir e atribuir sanções pelo não-cumprimento? Quem deve definir quais os direitos fundamentais?
A resposta a estas questões não é simples, universal ou imediata. Requer a consciência de que a mudança nas relações de poder começa no reconhecimento da sua existência, designadamente na cooperação internacional, e implica igualmente interrogar formas de responsabilização colectiva que permitam mudar sistemas de poder, de modo a ultrapassar visões da pobreza como insuficiência de recursos e a possam perspectivar na sua complexidade, incluindo a distribuição daqueles. Neste sentido, repensar termos como “ajuda” que implicam por vezes, processos de inferiorização e dependência e reclamar o sentido dos termos “direito”, “dever”, “individual”, “colectivo” e “cooperação”.

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