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O conceito de justiça aponta para um conjunto de princípios que orientam a vida de grupos sociais, definindo o que está certo ou o que está errado; associado ao conceito está igualmente a noção de direito, ou seja, de um conjunto de normas socialmente legitimadas e que são aplicadas na resolução dos litígios que afectam as sociedades, como forma de manter a ordem. A justiça, enquanto conceito polissémico, aponta igualmente para o respeito à igualdade - independentemente do género, classe social, raça, etnia, religião - de todos perante as normas que regem uma dada sociedade. Aceder à justiça e ao direito significa a conquista da cidadania e alcançar o estatuto de sujeito de direito e de direitos. O acesso à justiça e o uso do direito actuam, no seu conjunto, como elementos reparatórios das desigualdades sociais, contribuindo para o respeito pela dignidade humana e democratização da democracia (Santos, 2006, 2007).
Garantir o acesso à justiça e ao direito, em qualquer sociedade, significa que os seus membros conhecem os seus direitos, e que não se conformam quando se sentem lesados; significa igualmente que desfrutam dos requisitos para vencer os custos e as múltiplas barreiras para aceder ao direito e aos meios mais adequados e legitimados: os tribunais judiciais nalguns casos, ou a outras instâncias consideradas socialmente legítimas para a resolução dos seus litígios.


No campo da teoria jurídica e da filosofia do direito, a justiça e o direito circunscrevem-se exclusivamente ao direito e ao sistema judicial sancionado oficialmente pelo Estado: o direito oficial e o sistema judicial formal. Porém, como referido, estão vigentes muitos outros conhecimentos jurídicos – tradicionais, populares, camponeses, modernos, indígenas, etc. – que se moldam em práticas jurídicas e judiciais protagonizadas por cidadãos comuns, não profissionais do direito. Tais práticas podem não ser consideradas oficialmente, pelo Estado, como jurídicas ou judiciais, mas de uma perspectiva socio-cultural têm estruturas e cumprem funções semelhantes (Santos, 2003). O alerta para estes elementos e práticas é fundamental quer para compreender as representações e práticas dos cidadãos, quer para compreender o próprio direito do Estado, oficial, e a ciência jurídica que sobre ele se produz. Um e outra são fenómenos sociais que actuam, muitas vezes, em rede com os outros conhecimentos jurídicos e judiciais não profissionais, e as instituições em que estes funcionam.


Se bem que o conceito de justiça esteja associado ao conceito de direito, como a faculdade de julgar – interpretar e decidir sobre um dado litígio – de acordo com as normas locais, estas são predominantemente vistas, no contexto do moderno Estado-nação, como as leis do Estado. A justiça é pois, por vezes, identificada apenas com o conjunto de órgãos que compõem o poder judiciário. Este último aspecto resulta do mito criado pela ideia de Estado-Nação, do Estado como a única fonte legítima de direito. Ou seja, num sentido ideal, todos os cidadãos estão sujeitos à mesma lei, todos estão em igualdade de circunstâncias para recorrer a um tribunal de justiça, onde todos têm o direito de ser julgados com base numa mesma normatividade.


Porém, o direito reflecte uma variedade de fenómenos sociais. Quando uma sociedade apresenta mais do que uma fonte viável de direito ou de ordem jurídica está-se perante uma situação de pluralismo jurídico. O fenómeno do pluralismo jurídico é concomitante com o pluralismo sociocultural, e portanto, com o pluralismo de conhecimentos. Corpos jurídicos coexistentes podem abranger diferentes espaços geográficos e políticos, assim como longas sequências temporais, muito além do que é formalmente reconhecido. As próprias demarcações entre os sistemas de justiça variam de forma complexa, dependendo nas suas formas e utilidades do papel que os diferentes actores sociais envolvidos atribuem a estes sistemas. As ordens jurídicas (e não apenas as leis do Estado) podem ou não reconhecer outras ordens de diversas maneiras, construindo redes de relações que podem, potencialmente, influenciar actores sociais diversos (Meneses, 2012).


Sociedades como a portuguesa, a brasileira, a angolana, ou a moçambicana apresentam situações de diversidade cultural próprias. Porém, em todas elas, o Estado moderno independente apostou na ideologia do centralismo jurídico. Nos dois últimos casos, as reformas legais que acompanharam os anos revolucionários que se seguiram às independências procuraram criar uma cultura legal homogénea com base nas leis do Estado, uniforme para todos os cidadãos. As reformas jurídicas, que pretendiam gerar esforços para se abolir a diferença entre cidadãos colonizadores e súbditos coloniais geraram, em simultâneo, uma atitude de indiferença para com a pluralidade das culturas jurídicas existentes, situação que tem conhecido mudanças nos últimos anos. Em poucas palavras, estes Estados aceitaram, como legítimos, normas instituições jurídicas importadas com grandes benefícios para os empreendedores dessa actividade, perpetuando a situação de definição do funcionamento da justiça e do direito a partir das matrizes definidas nos países do Norte global, a serem usadas para todos os outros países e culturas. As disparidades encontradas entre o modelo de referência e as situações de funcionamento do direito e da justiça foram sendo analisadas como situações particulares ou distorções, condições negativas só mitigáveis através de uma aproximação ao modelo (Meneses e Lopes, 2012).


Quer no caso de Angola, quer no de Moçambique, a título de exemplo, em termos de pluralismo jurídico, o que salta aos olhos é a sua enorme riqueza e complexidade. Nestes países funcionam várias ordens jurídicas e sistemas de justiça. Num segundo plano, assiste-se a uma intensa interpenetração e/ou contaminação recíproca entre essas diferentes formas de direito e de justiça, reflectindo situações de hibridação jurídica. Ao nível das percepções dos indivíduos e dos grupos sociais sobre a justiça e o direito, estas situações traduzem-se em formas de interlegalidade (Santos, 2003). O direito e a justiça, por que se orientam e mobilizam no seu quotidiano, são feitos de vários direitos e justiças, uns usados preferencialmente na família, outros na comunidade, outros no mercado, outros no trabalho e outros, ainda, no espaço público da cidadania. Assim, a análise dos processos de negociação e apropriação dos vários sistemas de justiça que incluam a apropriação das instâncias e sua transformação para servir os interesses das comunidades alertam para a complexidade e vitalidade contemporâneas.


No seu conjunto, no início do séc. XXI, estas experiências, alternativas à justiça oficial e formal, apontam para a possibilidade de construção de um sistema de justiças mais humano, próximo, efectivo e democrático, onde a justiça é feita com o povo e para o povo. E este processo exige que o Estado decida como lidar (apoiar? desqualificar? ignorar?) com os sistemas de justiça presentes. Importa também ter em mente que a ideia de um Estado cuja constituição assente no reconhecer do carácter multicultural da sua justiça sugere claramente que a correspondência homónima entre nação e Estado não é possível nem necessária. A nível das comunidades, cujas várias instâncias participam, com o Estado, na resolução de litígios, estas têm vindo a desenvolver práticas de justiça cuja inspiração assenta nas suas referências culturais tradicionais, agora ampliadas em função das exigências contemporâneas, incorporando princípios globais de direitos humanos nos sistemas de justiça que se renovam em permanência.

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