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O problema da água integra a magna questão de saber se teremos capacidade, enquanto indivíduos, empresas, Estados, organizações internacionais e multilaterais de construir as condições institucionais, políticas e económicas que evitem a rota de colapso, para onde todo os indicadores apontam que nos estamos a dirigir. Os governos devem recorrer, cada vez mais, às redes de conhecimento (universidades, institutos, centros de investigação, academias, ONG, etc.) não só para a formulação das políticas públicas como para a sua avaliação e revisão atempadas.

A água numa visão de conjunto: Um dos elementos fundamentos de qualquer estratégia política responsável passa pela manutenção do acesso aos recursos hídricos, em qualidade e quantidade. A água está hoje sujeita a dois tipos de pressão muito distintos. Por um lado, uma pressão quantificável, bastante previsível, com um padrão quase linear de evolução. Tal é o caso da pressão demográfica sobre os recursos hídricos, que actua tanto pelo aumento bruto da população (caso de muitos dos Países em Desenvolvimento) como pelo aumento dos consumos nas populações com rendimentos crescentes (caso de muitos países emergentes e de todos os países desenvolvidos). Por outro lado, existem pressões sobre a água muito mais imprevisíveis e complexas. O caso mais relevante é o das alterações climáticas, com alcance global e um tipo de impacto transversal e não linear, afectando os modelos meteorológicos, o ciclo hidrológico, a quantidade e qualidade da água disponível, quer à superfície, quer nos lençóis freáticos, incidindo também sobre a segurança de abastecimento de grandes bacias hidrográficas, como ocorre na cordilheira dos Andes ou nos Himalaias.

De acordo com todas as projecções, a procura da água nas próximas décadas, mesmo descontando os efeitos mais complexos das alterações climáticas, vai aumentar dramaticamente, passando de um consumo anual de 4 500 mil milhões de m3, em 2005, para 6 900 mil milhões de m3, em 2030. A ligação às componentes demográficas e mudança de estilos de vida em países emergentes é bastante significativa. Com efeito, o aumento mais acentuado da procura será em África (um crescimento de 283%), significativamente, o Continente que irá mais do que duplicar a sua população, passando de 900 milhões de habitantes, em 2005, para cerca de 2 mil milhões em 2030. Também a Ásia, que crescerá, no mesmo período, de 3,9 mil milhões para 5,2 mil milhões, conhecerá um aumento acentuado da procura.

Alguns traços rápidos ajudam a melhor compreender o que se encontra em causa na situação desse bem vital para a humanidade e a vida que é a água:


• A Pegada Hídrica Total (PHT) de um país tem duas vertentes: a) A Pegada Hídrica Interna (PHI) é o volume de água necessário para gerar serviços consumidos domesticamente; b) A Pegada Hídrica Externa (PHE) é água contida nos serviços e bens importados.

• Os Países em Desenvolvimento são aqueles com menor capacidade para preservar os seus recursos hídricos (a “água cinzenta”, dos efluentes industriais e domésticos, contamina a “água azul” (superficial e subterrânea) e a “água verde” (humidade do solo).

• O uso da água está marcado pela irracionalidade e pelo desperdício (sobretudo no sector agrícola, que corresponde a 70% do consumo humano). As mudanças de hábitos alimentares, para dietas menos ricas em carne, será um dos ingredientes de uma estratégia bem sucedida de uso mais eficiente dos recursos hídricos.

• A poluição dos recursos hídricos tem não só aumentado os custos do seu uso como conduzido à degradação acelerada de preciosos ecossistemas (10 000 espécies desaparecidas ou em perigo).

• Apesar do gigantismo de milhares de projectos hidráulicos, dispersos pela superfície planetária, erguidos na maioria dos casos sem uma adequada consideração pelos impactes ambientais, mais de 1,1 mil milhões pessoas vivem sem acesso seguro a água, 2,4 mil milhões não possuem condições adequadas de saneamento, registando-se, anualmente 5 milhões de mortes associadas a esta deplorável falta de condições. Cólera, disenteria, enterite, febre tifóide, hepatite A, poliomielite, malária…eis a constelação de um pesadelo sanitário de veiculação hídrica.

• A pressão humana sobre a água tem conduzido a uma crescente escassez nos recursos disponíveis, motivando situações de grande stresse hídrico. Actualmente, 40% da população mundial vive com menos de 2000 m3 per capita anuais. Estima-se que em 2025 metade a dois terços da população do globo habite em áreas com níveis diversificados de stresse hídrico. Ao ritmo actual os Objectivos do Milénio para a água, serão atingidos com alguns anos de atraso, em particular para o saneamento básico.

• A escassez hídrica reveste-se cada vez mais de delicados problemas estratégicos e de segurança. A existência de 263 bacias hidrográficas internacionais constitui um repto ambiental e técnico, mas também diplomático, político e cultural, no sentido de proporcionar um acesso equitativo e pacífico a esse bem precioso a todas as partes e actividades interessadas. Entre 1999 e 2006 registaram-se 60 conflitos e disputas, revestindo-se de diversos graus de intensidade, de natureza internacional e doméstica, em torno da posse e uso de recursos hídricos.


No labirinto hídrico da pobreza. Uma parte da pobreza associada à água deriva da sua escassez. Contudo, existe também o reverso da medalha: a pobreza que resulta da exclusão e marginalização de grupos sociais inteiros, geralmente camponeses pobres, assalariados rurais, que são transformados em refugiados nos seus próprios países e regiões pela implantação de gigantescas obras hidráulicas. Quatro milhões de deslocados devido à barragem das Três Gargantas, no rio Yangtsé, na China. Meio milhão de refugiados por causa da barragem de Sardar Sarovar, no rio Narmada, na Índia. A Comissão Mundial de Barragens, no seu relatório de 2001, falava entre 40 a 80 milhões de pessoas desalojadas pelas cerca de 45 000 obras de hidráulica construídas no decurso do século XX…

Uma boa legislação é indispensável para romper o círculo vicioso da pobreza hídrica. Mas um país pode ter boas leis e até planos estratégicos, sem que tal produza efeitos significativos se faltar a vontade política para criar as estruturas técnicas, para disponibilizar os meios financeiros e para formar as capacidades humanas que permitam uma cabal implementação das boas leis e das razoáveis opções estratégicas. A água necessita de informação adequada, recolhida no campo e trabalhada pelos meios técnicos adequados, precisa sobretudo de boa governação baseada na transparência e na possibilidade de todos os interesses ligados a um certo caudal ou a uma certa área hidrográfica poderem apresentar os seus pontos de vista e os seus argumentos.

A água necessita de um mercado regulado, que permita preços justos para esse recurso, que permita tarifas flexíveis, que discriminem positivamente os mais pobres. A pobreza torna a água num bem de consumo luxuoso para os mais desprovidos. Hoje, o negócio da água movimenta cerca de 700 mil milhões de dólares por ano. Em 2004, só no sector da água engarrafada ganharam-se 100 mil milhões de dólares. Entre os principais consumidores contam-se o México, a China, o Brasil, a Índia, a Indonésia. Isso significa que em muitos casos, aqueles que mais necessita e menos podem são os que mais pagam pela água. A pobreza mantém-se, também, pela inércia dos interesses instalados.

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