O carácter eminentemente qualitativo do desenvolvimento é, de uma forma geral, algo de relativamente bem conhecido e aceite. Está, aliás, na base da distinção habitual entre desenvolvimento e crescimento económico, segundo a qual o segundo denota a expansão quantitativa da produção de bens e serviços, enquanto o primeiro designa a transformação qualitativa das estruturas sociais e económicas no sentido do aumento do bem-estar da sociedade. Esta última distinção é, porém, mais complexa do que parece à primeira vista – e um dos motivos para que assim seja consiste no facto da definição de desenvolvimento que lhe está implícita condensar duas acepções do termo, interligadas mas distintas, que é útil analisarmos separadamente: por um lado, o desenvolvimento como processo histórico de mudança socioeconómica; por outro, o desenvolvimento enquanto categoria normativa. A dimensão qualitativa é central em ambas as acepções, mas é-o de formas distintas. Vejamos porque assim é.
Quando falamos de desenvolvimento enquanto processo histórico de mudança socioeconómica, a dimensão qualitativa é central na medida em que não estamos simplesmente a falar de uma determinada sociedade produzir mais do mesmo, permanecendo inalterada nas suas estruturas e formas de organização. Pelo contrário, o crescimento da produção simultaneamente requer e sustenta todo um conjunto de transformações qualitativas – ao nível da expansão da esfera de influência do mercado, da alteração das formas de organização técnica e social da produção, do aprofundamento da urbanização e da alteração da distribuição sectorial da população activa (da agricultura para a indústria e serviços), para referir apenas algumas das dimensões mais centrais. Na verdade, a própria tendência para “produzir mais” e a dinâmica de mudança e inovação constantes que nos habituámos a considerar como algo de natural constituem um fenómeno histórico relativamente recente, que é ele próprio o resultado de transformações qualitativas ao nível da organização das sociedades. Assim, não só a génese do crescimento económico moderno como também a sua sustentação estão intrinsecamente ligadas às transformações qualitativas que referimos atrás: a expansão quantitativa e a alteração qualitativa determinam-se e viabilizam-se mutuamente. Torna-se assim evidente que o desenvolvimento socioeconómico não consiste numa mera reprodução das sociedades a uma “escala maior”, mas sim num processo de transformação qualitativa e multidimensional dessas mesmas sociedades, em grande medida imanente (isto é, não guiada por um plano deliberado mas sim resultante da acção descoordenada de uma multiplicidade de actores sociais) e muitas vezes conflitual.
A outra acepção a que nos referimos no início deste texto consiste no desenvolvimento enquanto categoria normativa. Aqui, não estamos a referir-nos aos processos históricos objectivos de mudança socioeconómica pelos quais passam as diferentes sociedades, mas sim à formulação de visões relativamente àquilo que constitui uma “boa sociedade” – ou seja, à identificação dos aspectos que importa termos em conta para avaliarmos o nível de bem-estar de uma determinada sociedade ou para nos pronunciarmos sobre a maior ou menor desejabilidade de diferentes opções políticas. Ora, também aqui a dimensão qualitativa ocupa um lugar central - ainda que num sentido distinto do anterior.
A expansão quantitativa da produção de bens e serviços numa determinada sociedade tende, em princípio, a permitir a satisfação de necessidades adicionais e, por essa via, a originar um aumento do bem-estar. Porém, essa não é uma consequência necessária: a desigualdade no acesso aos bens e serviços adicionalmente produzidos ou as consequências sociais e ambientais não contabilizadas da expansão da produção, para referir apenas dois exemplos, podem ter como consequência que o crescimento da produção esteja associado a um decréscimo do bem-estar (e, nesse sentido, a um retrocesso do ponto de vista do “desenvolvimento”).
Muitos dos aspectos que, de forma mais ou menos unânime, consideramos necessários a uma vida com qualidade e à construção de sociedades decentes não são facilmente (ou de todo) passíveis de expressão através de métricas quantitativas – particularmente quando estas se limitam a traduzir a quantidade de bens e serviços com uma expressão mercantil ou equiparada, como é o caso do Produto Interno Bruto (PIB). Porém, esses aspectos não são por isso menos importantes: liberdade, participação, paz, justiça social e salvaguarda do ambiente são apenas alguns exemplos de aspectos absolutamente cruciais para o bem-estar dos indivíduos e sociedades que não são contemplados pelas métricas quantitativas habituais.
Felizmente, existe uma consciência crescente das insuficiências das métricas tradicionalmente utilizadas nas comparações intertemporais e internacionais. O trabalho da Comissão para a Medição do Desempenho Económico e Progresso Social, coordenada por J. Stiglitz, A. Sen e J.-P. Fitoussi (2009), por exemplo, constituiu um esforço sistemático recente no sentido de assinalar essas mesmas insuficiências, chamar a atenção para as dimensões menos visíveis mas não menos centrais do bem-estar social, e propor um conjunto de recomendações com vista ao aperfeiçoamento dos instrumentos de avaliação da qualidade do desenvolvimento. Entre outros contributos, este relatório recomenda que sejam tidos em conta, a par do nível de vida material (sobre o qual incidem as métricas tradicionais), aspectos igualmente centrais como a saúde e a educação; a qualidade do emprego; o tempo disponível e a qualidade das actividades pessoais; a participação política e a qualidade das instituições; a segurança física e económica; a qualidade dos laços e relações sociais; e as condições ambientais presentes e futuras.
Esta enumeração das dimensões daquilo que constitui uma “boa sociedade” e o rumo desejável do desenvolvimento aproxima-se assim da visão, também ela formulada por Amartya Sen (2003), do desenvolvimento enquanto “expansão das capacidades humanas” – expansão essa que comporta elementos tanto materiais como imateriais. Trata-se de uma visão que tem, também ela, sido alvo de críticas por não ser ainda suficientemente ambiciosa e, em particular, por continuar a assentar implicitamente no individualismo metodológico – na medida em que o nível de bem-estar da sociedade é equiparado à soma do nível de bem-estar dos indivíduos que a compõem, não sendo dada a devida atenção às questões da desigualdade ou das relações de poder entre diferentes grupos e estratos sociais. Porém, constitui certamente um passo importante na direcção certa, uma vez que procura colmatar o fosso artificial entre a economia e a sociedade, ou, no caso concreto em apreço, entre a dimensão quantitativa do crescimento e as dimensões qualitativas do desenvolvimento.
Para efeitos de exposição, começámos este texto sugerindo uma distinção entre duas acepções de “desenvolvimento”: como processo histórico objectivo e enquanto categoria normativa. A terminar, é importante voltar a ligá-las, chamando a atenção para o facto do desenvolvimento, enquanto processo de mudança socioeconómica, ser em grande medida imanente, mas também susceptível de orientação segundo o confronto das diferentes visões relativamente à sociedade em que desejamos viver. Importa por isso rejeitar as visões tecnocráticas do desenvolvimento e abraçar a ideia que, em última instância, o que está em causa é a forma como as sociedades se organizam; que as decisões nesse âmbito são intrinsecamente políticas e devem por isso ser democráticas e participadas; e que, mais do que sociedades que produzam mais, devemos procurar construir sociedades onde se viva melhor.