Com o nascimento no dia 15 de Janeiro de 2001 de Wikipédia, pensado como uma costela de Nupédia, projecto também ligado à livre circulação e elaboração de informações, mas cujos referentes eram investigadores de varias áreas, algo mudou para sempre no mundo da divulgação de conteúdos e da circulação de saberes.
Hoje Wikipédia, através da acção da Wikimedia Foundation, multiplicou-se em vários projectos entre eles complementares que pretendem cativar públicos-alvo diferentes, direccionando o tipo de informação pretendida em subprojectos como por exemplo Wiktionary, Wikibooks, Wikisource, Wikispecies, Wikiquote, Wikinews, Wikiuniversity.
Lembro-me que quando era pequena tinha um grande sonho: ter a chamada Enciclopedia dei Ragazzi. Na casa onde cresci, cheia de livros, dicionários e papéis havia apenas uma enciclopédia, enorme, em vários volumes que ia crescendo de ano para ano, quase ao mesmo ritmo com que eu própria crescia – era a mítica Treccani. Sentia-me frustrada perante aquele verdadeiro monumento de informações às quais, na prática, não tinha acesso porque tudo era pensado para um utilizador adulto, capaz de fazer as ligações entre entradas e temas e sobretudo capaz de orientar-se dentro de uma linguagem em que as informações eram proporcionadas de forma asséptica e pomposamente profissional. Acabei por nunca receber uma Enciclopedia dei Ragazzi e fui aprendendo, porém, a procurar informação na monumental Treccani. Hoje em dia, mesmo não sendo uma nativa digital, para qualquer dúvida “vou à internet”, aliás vou a Wikipédia, sempre que preciso de conferir uma data, ter a certeza de como se escreve o nome de um determinado autor, ou ter uma ideia geral de um determinado conceito ou de um assunto mais específico.
Hoje em dia eu, como muitos outros, posso ter uma ideia seja do que for com um rápido clique no meu compurador e de alguma forma parece-me que o cerne da questão, quando se fala de acesso ao saber global (globalizado?), esteja banalmente aí: eu posso ir à Wikipédia tal como “à internet” em geral, como muitos outros, mas não como todos os outros, porque, apesar da globalização e de todos os esforços que se fazem, o digital divide, existe e vive junto de nós. Passa pela possibilidade de ter acesso não apenas à gramática da informática na perspectiva do utilizador, mas pela possibilidade material de ter um computador à mão, para não falar de um smartphone ou um iPad.
A questão que se coloca é, portanto, a de poder ou não ter facilidade de acesso à rede, condição que, em muitos lugares do nosso planeta global mas ao mesmo tempo fragmentado, em fronteiras não apenas geográficas, é ainda uma miragem para a maioria dos cidadãos mesmo das zonas urbanas de uma boa parcela do mundo em que vivemos.
Muitas vezes, mesmo quando se tem acesso à rede, trata-se de um acesso à rede consumido em lugares públicos, quase colectivo, o que cria uma sintaxe do utilizador menos pessoal e mais virada para o contacto, para a comunicação imediata ou para a busca pontual de uma ou outra informação. Daí fosse talvez útil repensar uma forma dessas plataformas de saberes capaz de não prescindir do direito à uma plena cidadania global mesmo no acesso ao saber imaterial, e muitos dos projectos, sem dúvida meritórios que tentam incluir o mais possível os chamados “outros saberes” tal como a sua “carne viva”, isto é, não apenas as noções mas o sistema de práticas discursivas e culturais dos quem estes saberes produzem. Mas como pensar estratégias inclusivas deste tipo quando ainda está em questão como chegar aos que necessitam de ter acesso à informação? Muitos são os projectos sem dúvida pioneiros que andam nesta direcção na tentativa de “repensar” e por tabela “democratizar” o saber. Wikipédia, enquanto plataforma de conhecimento (como sabemos a quinta por número de usuários do todo o mundo cibernético) que ainda por mais se define “ livre e colaborativa” pelo facto de incluir e promover também projectos temáticos e lugares de discussão, pela sua transdisciplinaridade, pelo seu plurilinguismo (280 línguas, evidentemente nem todas representadas com o mesmo número de entradas) não se tem poupado no esforço de alargar a sua plataforma à escala global. Um exemplo entre outros é o projecto Wikiafrica, que desde 2011 conta também com a pareceria formal com o África Centre da Cidade do Cabo em qualidade de responsável do networking e de implementação de Wikiafrica no continente africano, e que nasceu originariamente da sinergia entre a fundação Associazione Wikimedia Italia e Lettera27 cuja missão, por sua vez, è apoiar o direito à alfabetização, à instrução e mais em geral favorecer o acesso ao conhecimento sobretudo nas zonas menos favorecidas do mundo. WikiAfrica, tem como seu objectivo, nesta perspectiva, aumentar o número de entradas relativas ao continente africano e sobretudo torná-las mais fidedignas querendo atingir o limiar de 30.000 até finais de 2012. Um projecto deste tipo baseando-se sobre a intuição matricial que subjaz ao espírito com o qual foi criada a própria plataforma de Wikipédia, revela a consciência de que a rede è uma possibilidade mas è também o exacto contrário, enquanto poderá tornar-se a médio e longo prazo em mais um elemento de exclusão e de empobrecimento de parte da população do planeta e portanto de progressiva perda da possibilidade de ter acesso, em certas zonas, a uma plena cidadania tanto a nível global, quanto local. Num projecto deste tipo que obviamente se propõe em filigrana também como instrumento para a Educação ao Desenvolvimento, faz com que Wikipedia tente alargar o próprio conceito de plataforma de conhecimento ao propor-se também como espaço de criação de redes e de parecerias concretas com intuições públicas e privadas, tal como festivais, feiras do livro, tendo como finalidade a promoção de cinema, literatura, documentários produzidos em África e em contextos de diáspora e migração, tal como a recuperação de saberes locais em risco de desaparecimento.
Mais uma banalidade: Talvez seja preciso lembrar que a rede é em si rede, isto é possibilidade de pôr realidades diferentes a trabalhar em conjunto, imaginando projectos que possam ter em conta não apenas quem produz este universo de saberes, mas também em que tipo de horizonte cultural se coloca quem deles vai fruir, isto é o famoso “utilizador final”. Seria desejável que uma lógica inclusiva como a de Wikipédia promovesse uma participação o mais possível activa que estes saberes habitam. A visibilidade dos chamados “saberes outros” não é por si representativa se não se tem em conta uma possível reprodutibilidade dos mesmos saberes. Dar-lhe visibilidade, corpo, existência exactamente na conexão com o saber que toda a globalização consome, parece-me um primeiro passo que não pode prescindir de uma sinergia entre quem devolve visibilidade (i)material a determinados conteúdos e a base que historicamente os produz. Sem isso parece-me que o rótulo de “contribuições africanas e locais”, tão recorrente nas páginas de apresentação do Wikiafrica, corre o sério risco de limitar-se a evocar um imenso vazio no qual nunca caberão novas lógicas e novas epistemologias. Talvez valha a pena lembrar que a internet, enquanto repositório de noções e saberes, é também um arquivo e, enquanto tal, a maneira como organiza as suas entradas e os seus descritores acabam por ser, por sua vez, uma organização discursiva e narrativa que não pode prescindir do seu lugar de enunciação. Apenas tendo em conta este elemento poderemos falar de fecundo diálogo entre mundos que possam trabalhar para chegar ao mesmo pé de igualdade na complexa hierarquia do saber global. Por isso, a inclusão de determinados conteúdos e a forma em que se declina a própria gramática da sua organização pode favorecer a existência de outras práticas que participem também de um renovado diálogo entre mundos. Para que sempre menos pessoas tenham que aprender o alfabeto do conhecimento através de uma linguagem sentida como completamente alheia, tendo assim que aplicar e praticar um complexo percurso de tradução do próprio património de saberes que nem sempre “acontece” em pé de igualdade entre os sujeitos que dele participam.