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O mundo não é plano, mas profundamente desigual. De acordo com os indicadores de desenvolvimento do Banco Mundial, os 10% mais ricos da população mundial foram responsáveis por 59% do consumo privado global em 2008, enquanto os 10% mais pobres consumiram em média 120 vezes menos: apenas 0,5% do total global. Ao nível do património, as disparidades são ainda mais impressionantes: segundo a estimativa de Davies et al (2008), mais de metade da riqueza mundial é propriedade de apenas 2% da população, enquanto o património da metade mais pobre da humanidade não corresponde sequer a 1% da riqueza global. Os 1% mais ricos a nível mundial possuem, em média, um património quase 2.000 vezes superior à dos 50% mais pobres.

E, como seria de esperar, esta enorme disparidade ao nível do rendimento e do património faz-se acompanhar por desigualdades igualmente profundas em muitos outros domínios, tal como ilustrado de forma especialmente impressionante por alguns indicadores de saúde e mortalidade: a probabilidade de uma criança morrer antes de atingir os 5 anos de idade em Angola (161/1000) era, em 2010, cerca de setenta vezes superior à que se verificava na Islândia (2,4/1000); e um indivíduo nascido nesse mesmo ano no Japão tinha, à nascença e em média, uma esperança de vida superior em 35 anos à de um outro nascido na Guiné-Bissau.


O mundo é, portanto, muito desigual. Mas o que é isso da desigualdade? Uma consequência inevitável de diferenças naturais entre seres humanos e entre nações? Ou uma perversão dos sistemas socioeconómicos, com causas estruturais e evitáveis? Um problema a combater activamente? Ou um aspecto a encorajar, na medida em que possa estar associado à meritocracia e ao dinamismo económico? Quais são as principais tendências recentes da desigualdade a nível global? Que consequências produz, afinal? E de que formas será possível reduzir a desigualdade, caso se considere desejável fazê-lo?


Ao falar-se de igualdade e desigualdade, é habitual distinguir-se entre igualdade de oportunidades e igualdade de resultados. A primeira assume um carácter sobretudo formal e legal: está em causa a igualdade “de meios” e a inexistência de situações de discriminação ou de desvantagens à partida. Já a segunda assume um carácter mais “substantivo”, referindo-se à maior ou menor disparidade ao nível das situações de chegada. Segundo a meta-narrativa dominante da modernidade “ocidental” – o liberalismo –, o tipo de igualdade que constitui um objectivo político, social e económico razoável e legítimo é a igualdade de oportunidades, não a de resultados: esta última é considerada ética e politicamente irrelevante, quando não mesmo algo de positivo e defensável (na medida em que reflicta diferenças de mérito e esforço). Contudo, esta visão não é partilhada por outras correntes político-filosóficas mais igualitárias, tal como não o é pelos sistemas normativos dominantes noutros espaços do globo: muitas comunidades rurais parcialmente pré-capitalistas em África, na Ásia e na América Latina apresentam ainda hoje valores e normas sociais dominantes que penalizam fortemente a desigualdade, especialmente acima de determinados níveis considerados nocivos para a coesão dessas mesmas comunidades.


O debate em torno da desigualdade e das suas consequências recebeu recentemente um novo impulso através do trabalho dos epidemiologistas Richard Wilkinson e Kate Pickett (2010), que no livro “O Espírito da Igualdade” assinalaram a existência de uma relação estatística forte e robusta entre o grau de desigualdade à escala nacional e uma série de problemas sociais, incluindo ao nível da saúde física e mental, insucesso escolar, obesidade, violência, criminalidade, abuso de drogas ou incidência de gravidez adolescente. O argumento defendido e empiricamente sustentado por estes autores é que acima de um determinado limiar de riqueza material das sociedades, a qualidade da vida social deixa de depender do nível do rendimento e passa a depender, sobretudo, do grau de igualdade da distribuição: as sociedades mais igualitárias apresentam sistematicamente indicadores mais positivos em cada um dos domínios atrás referidos. A explicação para isso, segundo estes autores, é que a desigualdade exerce um efeito nocivo sobre os níveis de coesão social e confiança interpessoal, fomentando a ansiedade, a morbilidade, o consumo excessivo e a agressividade. Ora, se assim é, o combate à desigualdade deixa de ser apenas uma questão político-filosófica relativamente abstrata, passando a assumir também um carácter instrumental: maior igualdade de resultados constitui não só um fim em si mesmo, como também um instrumento para a construção de sociedades mais harmoniosas, mais saudáveis e com maior qualidade de vida para todos.


Neste sentido, as tendências a nível mundial não podem ser consideradas animadoras. Para efeitos de análise, podemos separar a desigualdade global em dois factores complementares: desigualdade entre países e desigualdade no seio dos vários países. No que se refere a esta última  a tendência nos últimos 30 anos é inequívoca: na vasta maioria dos casos, incluindo em sociedades tão distintas quanto os Estados Unidos, a China, a África do Sul ou a Suécia, os níveis de desigualdade de rendimento registaram aumentos significativos, tal como expresso pelo indicador mais comummente utilizado neste tipo de análises (o coeficiente de Gini) (Milanovic 2011). À luz dos argumentos avançados por Pickett e Wilkinson, estamos assim perante um retrocesso claro e generalizado ao nível da qualidade da vida social. No que se refere à desigualdade entre países, a tendência pode ser considerada mais positiva: devido principalmente à ascensão económica de alguns países muito populosos e relativamente pobres, sobretudo a China e a Índia, mas também ao crescimento económico da África subsariana ao longo da última década, a desigualdade internacional global em termos dos níveis médios de rendimento tem apresentado uma tendência decrescente nos tempos mais recentes. O resultado líquido da acção combinada destas duas tendências é objecto de discussão, mas é provável que o gigantesco fosso entre ricos e pobres a nível mundial continue, apesar desta última tendência, a tender para aumentar (Milanovic 2007).


Seja à escala global ou nacional, os mecanismos de combate à desigualdade dividem-se essencialmente em preventivos e correctivos. Estes últimos consistem principalmente em diferentes formas de redistribuição directa ou indirecta do rendimento – através dos sistemas fiscais e de protecção social nacionais, dos fluxos de ajuda internacional ou da provisão de bens públicos nacionais e globais. Porém, existe uma consciência crescente de que a redução sustentada e dinâmica da desigualdade exige algo mais do que correcções ex-post, devendo ser complementados pela adopção de mecanismos preventivos em diferentes domínios. Nesse sentido, os mecanismos tradicionais de combate à desigualdade à escala nacional assentam na regulação e enquadramento das relações laborais, na promoção de políticas activas de pleno emprego, na provisão pública robusta em áreas como a saúde e a educação e na adopção de políticas fiscais progressivas e limitadoras da amplitude da desigualdade. No caso dos Países em Desenvolvimento, o fomento e enquadramento dos mercados de trabalho desempenham também um papel-chave. Já o combate à desigualdade entre países depende essencialmente das trajectórias de desenvolvimento dos países mais pobres e de rendimento médio – as quais podem e devem ser apoiadas tanto através da ajuda pública ao desenvolvimento como de outras formas de cooperação, incluindo o estabelecimento de novas parcerias em domínios como as migrações internacionais, o comércio internacional, as transferências de tecnologia ou a provisão de bens públicos globais.

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