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Poucos conceitos têm gerado definições tão distintas como a liberdade. Os significados antagonicamente distintos atribuídos ao termo liberal – que lexicalmente significa “partidário da liberdade” – no discurso político nos dois lados do Atlântico ilustram bem este ponto. Nos Estados Unidos, a descrição de alguém como “liberal” será em geral interpretada como indicando um defensor de maior intervenção do Estado na economia, enquanto o seu homónimo europeu tenderá a ser visto como alguém que defende exactamente o oposto.



Nesse sentido, a liberdade é um bom exemplo daquilo que W. B. Gallie classificou como um “conceito essencialmente contestado”. Conceitos essencialmente contestados podem ser definidos como aqueles onde as preferências normativas, associadas a outros factores, levam a definições substantivamente distintas do mesmo conceito por parte de diferentes pessoas, sem consenso entre estas sobre o seu significado.



Neste texto analisamos brevemente o debate em torno do conceito de liberdade antes de examinar a sua relação com o desenvolvimento. Nesta relação sobressaem duas conclusões centrais. A primeira prende-se com a definição de liberdade: situar o conceito de liberdade no contexto do desenvolvimento ajuda a resolver uma parte substancial do debate filosófico em torno da sua definição. A segunda conclusão tem a ver com as implicações da liberdade para o desenvolvimento. Como se irá argumentar, a liberdade desempenha neste um papel central – quer enquanto meio para o desenvolvimento, quer enquanto um fim em si mesmo do desenvolvimento.



Como definir liberdade? Gerald MacCallum oferece uma definição global do conceito enquanto a ausência de condições impeditivas sobre um agente para que este realize determinados fins. A liberdade envolve então uma relação triádica: entre o agente; as condições impeditivas que sobre ele incidam; e aquilo que ele pretende realizar. Para usar a fórmula de MacCallum, liberdade significa que “x é livre de y para fazer ou tornar-se z”, com x a indicar o agente; y as “condições impeditivas como constrangimentos, restrições, interferências ou barreiras”; e z a ser constituído pelas possíveis “acções ou condições de carácter ou circunstância”.



Se esta definição é (largamente) incontestada, as dificuldades surgem em termos da definição do que constituem cada um destes três elementos. O debate filosófico em torno do âmbito dos vértices desta tríade é extenso – e ajuda a explicar por que motivo a liberdade é um conceito essencialmente contestado. Por exemplo, devemos considerar alguém que realiza uma acção baseada em informação insuficiente ou errada como sendo realmente livre quando encetou essa acção? E o que constitui a ausência de “condições impeditivas”? Será simplesmente a ausência de restrições e barreiras sobre o agente (por exemplo, leis que impeçam determinada acção); ou será também a ausência dos meios que permitem a acção?



Mais que o debate abstracto e filosófico, importa situar a liberdade no contexto do desenvolvimento. Será a ausência de restrições sobre o agente suficiente para assegurar a sua liberdade? Tomemos como exemplo um camponês na África subsariana que vê falhar a colheita que o sustenta. Quanto este aceita um empréstimo com taxas usurárias – que quase certamente limitam a sua capacidade de alimentação posteriormente – dificilmente consideraríamos a sua escolha livre, quando a alternativa ao empréstimo é não se poder alimentar (e, no limite, consequentemente não poder sobreviver). O mesmo se aplica em termos da definição da escolha do agente. Serão todas as decisões dos agentes realmente livres? Vários estudos indicam que a mutilação genital feminina é propiciada, entre outros factores, pela crença que esta é uma prática benéfica (por exemplo, por questões de higiene). Na ausência de informação, podemos considerar como livre a decisão de uma mãe de permitir a mutilação genital das suas filhas?



A análise anterior sugere uma clara articulação entre liberdade e desenvolvimento, com a ausência de desenvolvimento a limitar de forma significativa a liberdade dos indivíduos. Neste sentido, e para citar o título do seu célebre livro, Amartya Sen propõe o desenvolvimento como liberdade. Para Sen, o “alargamento da liberdade” é o “fim fundamental” do desenvolvimento, no sentido em que este último constitui “um processo de alargamento das verdadeiras liberdades que as pessoas usufruem”.



Nesta análise, o subdesenvolvimento caracteriza-se pela ausência de liberdade, que limita a capacidade do ser humano de viver a sua vida de um modo (que considere) adequado. Assim, da mesma forma que “a utilidade da riqueza reside naquilo que ela nos permite fazer”, o desenvolvimento deve alargar o âmbito daquilo que as pessoas podem fazer – as suas liberdades substantivas. Estas incluem não só aspectos nucleares da sobrevivência humana, como estar livre da fome, da desnutrição ou da mortalidade prematura provocadas pela pobreza económica; mas também as liberdades que alargam o âmbito de escolhas e capacidades do ser humano, como a educação, as liberdades civis e políticas, a ausência de desigualdades de género (que limitam as liberdades das mulheres), a segurança e a paz.



Como se pode inferir, esta definição de liberdade é relativamente ampla, centrando-se não apenas na liberdade de processos – em termos de ausência de restrições sobre o ser humano – mas também em termos das oportunidades que lhe são dadas. Neste sentido, Sen considera cinco ‘tipos’ de liberdade centrais para o desenvolvimento: as liberdades políticas; as disponibilidades económicas; as oportunidades sociais; as garantias de transparência; e a segurança protectiva.

Ao mesmo tempo, Sen considera estas liberdades não só como fim mas também como “o principal meio para o desenvolvimento”, na medida em que estão profundamente interligadas e se reforçam mutuamente. Como frisa, “as liberdades políticas tais como liberdade de expressão e eleições promovem a segurança económica” – uma ligação evidenciada pela inexistência de fomes em democracias, ao contrário do que aconteceu em contextos onde a participação dos cidadãos era limitada, senão mesmo inexistente, seja por dominação colonial ou pela natureza não-democrática do regime. De igual modo, “as oportunidades sociais, como a educação ou acesso à saúde”, alargam não só as disponibilidades económicas mas também a participação política; e estas, por sua vez, melhoram não só a condição individual como também os recursos públicos para serviços sociais. De igual modo, a transparência ajuda a combater a corrupção, um factor limitador das demais liberdades; enquanto que a segurança protectiva refere-se aos mecanismos que visam assegurar a protecção social em situações de vulnerabilidade, preservando assim as demais liberdades.



Uma nota final para as implicações desta perspectiva. Como Sen frisa, colocarmos a liberdade no centro do desenvolvimento obriga-nos também a repensar a nossa visão do processo de desenvolvimento. A liberdade no contexto do desenvolvimento implica assim vermos os países parceiros – e os seus cidadãos – não como meros “recipientes passivos dos benefícios dos programas de desenvolvimento” mas antes como agentes que “podem de facto moldar o seu próprio destino”. E não será permitir isto, em última análise, o propósito do desenvolvimento?

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