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ÁGUA DE TODO O ANO

Uma das propriedades da água é ser irrequieta. Foge quando pode, às vezes ao ponto de desaparecer do mapa e até da memória.


“Cabo Verde sofreu sempre uma seca cíclica, em média duas secas em cada dez anos, quatro em cada vinte, alternando pequenas e grandes crises. Mas foi em 1968 que tudo mudou, quando o arquipélago foi atingido pela seca do Sahel”, contou-me Elísio Rodrigues, fundador da organização de intervenção comunitária CITI-HABITAT, numa visita a São Francisco, na Ilha de Santiago. “Agora, pode chover numa noite o que devia chover num ano, mas não adianta” porque a água, desgarrada dos altos picos vulcânicos, precipita-se pelas encostas impermeáveis, enxurrando finalmente para o mar a pouca terra e as poucas culturas que se acumulam na paisagem agreste de Santiago e de outras ilhas. Água esquiva, a de hoje nas ilhas: rouba a terra e deixa a sede. É preciso então uma engenharia imaginativa, esforçada, a que se lança a fazer diques de gabião (enormes gaiolas cúbicas de arame cheias de pedra) para reter a água que ainda não há, mas que um dia virá.
Nas gaiolas ficará algum solo, alguma humidade, apenas algum tempo.


Elísio mostra-me o vale pedregoso que se avista de São Francisco. Está lá um fóssil de ribeira e, nas vertentes também sem vida, podemos acompanhar o friso improvável de valas que levam nada a lado nenhum. Algumas acabam em tanques vazios, idosos, gretados, estalados de calor e sol. Até aos anos 70, estes riscos na paisagem serviam culturas de regadio, diz Elísio. É preciso acreditar em toda a sua autoridade para acreditar que assim tão anteontem houve alguma água ali. “Aqui plantava-se cana sacarina, mangos, banana, hortaliças e o resto eram terrenos de pastagem”, confirma Porfírio, que ali nasceu. Nos anos 90 – contaram-me também, não tive nem confirmação nem desmentido científico, técnico ou político –, São Francisco deixou, de repente, de ter água porque foi aberto um furo a montante da freguesia. Para servir a Cidade da Praia. A Achada andou uns tempos a pagar água - de autotanque, que não de nascente! – ao dobro do preço de tabela.


Na cidade, a falta de água é uma angústia. Nos piores momentos, uma irritação urbana. Mas a cidade, porque a cidade é quem manda, tem normalmente a possibilidade de ir beber a outro lado. O campo, pelo contrário, quando não bebe, não é. Definha e petrifica. É assim em Cabo Verde; lembro-me perfeitamente de ser assim em Portugal. Bem dentro dos anos 70, na “minha” vila do Pinhal Interior, na Beira Baixa, Verão queria dizer racionamento de água durante vários meses, apesar de haver três albufeiras no concelho. Tão certo como os incêndios.


É claro: entre o Pinhal Interior e os vulcões áridos de São Francisco há toda uma distância, dirá alguém, chama-se desenvolvimento.


É claro: o “desenvolvimento”, nesta matéria, é a possibilidade de abrir uma torneira sem medo que não corra nada. Ou, quando muito, pensar na água pelo seu custo. Nunca, já não, pelo seu peso.

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